Ensaio sobre tudo e nada

...composições literárias breves, sobre diversos temas ou assuntos, geralmente em prosa, de carácter analítico, especulativo ou interpretativo... ou nada disto...

5.12.07

Purificado...

ensaiado por Bri |

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“Que não pare, que esta chuva não pare, murmurava […] Do corpo, disse, como para corrigir o metafísico pensamento, depois acrescentou, É o mesmo. Então, como se só essa tivesse de ser a conclusão inevitável, a conciliação entre o que tinha dito e o que tinha pensado, despiu de golpe a bata molhada, e, nua, recebendo no corpo, umas vezes a carícia, outras vezes a vergastada da chuva, pôs-se a lavar as roupas, ao mesmo tempo que a si própria. […] Na porta da varanda tinham aparecido a rapariga dos óculos escuros e a mulher do primeiro cego […] Ajudem-me, disse a mulher do médico quando as viu, Como, se não vemos, perguntou a mulher do primeiro cego, Tirem a roupa que tem vestida, quanta menos tivermos de secar depois, melhor, Mas nós não vemos, repetiu a mulher do primeiro cego, Tanto faz, disse a rapariga dos óculos escuros, faremos o que pudermos, E eu acabarei depois, disse a mulher do médico, limparei o que ainda tiver ficado sujo, e agora ao trabalho, vamos, somos a única mulher com dois olhos e seis mãos que há no mundo. Talvez no prédio em frente, por detrás daquelas janelas fechadas, alguns cegos, homens, mulheres, acordados pela violência das bátegas constantes, com a testa apoiada nas frias vidraças, recobrindo com o bafo da respiração o embaciamento da noite, recordem o tempo em que, assim, tal como estão agora, viam cair a chuva do céu. Não podem imaginar que estão além três mulheres nuas, nuas como vieram ao mundo, parecem loucas, devem estar loucas, pessoas no seu perfeito juízo não se vão por a lavar numa varanda exposta aos reparos da vizinhança, menos ainda naquela figura, que importa que estejamos todos cegos, são coisas que não se devem fazer, meu Deus, como vai escorrendo a chuva por elas abaixo, como desce entre os seios, como se demora e perde na escuridão do púbis, como enfim alaga e rodeia as coxas, talvez tenhamos pensado mal delas injustamente, talvez não sejamos é capazes de ver o que de mais belo e glorioso aconteceu algumas vez na história da cidade, cai do chão da varanda uma toalha de espuma, quem me dera ir com ela, caindo interminavelmente, limpo, purificado, nu.”

In Ensaio sobre a cegueira, José Saramago

Desde que o blog foi baptizado que pensava colocar aqui uma passagem deste ensaio sem nunca me conseguir decidir por uma em específico.
Existem com certeza muitas outras, talvez até mais representativas do livro e da história, mas esta, tendo em conta tudo o que está para trás, tudo o que esta “sociedade”, e particularmente estas mulheres passaram, achei-a particularmente bela.

Aguardo por a ver no grande ecrã…
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1 ensaios:

Anónimo disse...

bolas, apos prolongada introspeccao compreendo finalmente o genio deste escritor, do qual ainda nada li por reputada falta de tempo e incentivos, mas nao fazia ideia de que saramago tambem conhecera polacas outrora. sim, ele tambem conhece o humanismo e as formas dos deuses, sacanita,,,
beijinho Bri
sr.gouveia